Apontamento |
A minha alma partiu-se como um vaso vazio. Caiu pela escada excessivamente abaixo. Caiu das mãos da criada descuidada. Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. Asneira? Impossível? Sei lá! Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir. Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. E fitam os cacos que a criada deles fez de mim. Não se zanguem com ela. São tolerantes com ela. O que era eu um vaso vazio? Olham os cacos absurdamente conscientes, Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles. Olham e sorriem. Sorriem tolerantes à criada involuntária. Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? Um caco. E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali. Álvaro de Campos, 1929 a minha alma partiu-se, como um vaso vazio, como um caco já partido. partiu-se ontem, quando olhaste para mim e olhaste e olhaste e os teus olhos sorriram. ou talvez não tenham sorrido e sejam só os meus a verem aquilo que gostariam. senti uma compulsão de chorar e escrever, enumerar as perguntas que tenho para te fazer, as coisas que ficaram por partilhar... mais chorar do que escrever, mas o meu cérebro não parou enquanto os dedos não materializaram. o coração, esse sim, quase parou. por que me olhaste assim? assim como quem está cheio de vontade, de sonhos, de disponibilidade? por que não falaste? por que é que os teus olhos brilharam, porquê?? que comoção foi essa que me pareceu ter te assolado? porra!! não posso enganar-me de novo, contigo, tanto. não é possível. eu vi! eu vi esse sorriso que ilumina tudo, que suspende o tempo e o som, que não diz, mas mostra. eu vi, porra. não posso estar assim tão enganada. ou posso. ou posso estar a andar em círculos, a imaginar, a ver unicórnios, posso. ou quero. não sei. queria pegar nesta compulsão de escrever e conseguir efetivamente escrever alguma coisa. um livro sobre tudo o que ficou cá dentro, à deriva. escrever, de enchurrada um apelo, uma carta, um poema. mas só me sai um "porquê". porquê, porra, porquê? se tenho mais sensações do que quando era eu, do que quando contigo era eu, cheia. então porque não consigo converte-las em texto, em entrelaçar de dedos? que se foda a compulsão de escrever. esse nem verdadeira é, pois se fosse eu conseguia dizer-te o que quero, de facto. ou pelo menos o que me fazes sentir. se fosse verdadeiramente eficaz, conseguiria até produzir uma resposta. mas como o texto que só está completo quando lido, este ficará para sempre incompleto, porque tu, mesmo que o leias, nunca chegarás ao impulso da escrita. esse eu acho que só to consigo mostrar fazendo sentir. que se foda a escrita. fico com a compulsão de me afundar na almofada e rega-la de sal. essa ao menos, não engana. é o que é: fazer-te o luto, matar a esperança e dormir, como um bebé, cansada de tanto chorar. |
sábado, janeiro 28, 2012
apontamentoS
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1 comentário:
Gosto, muito!
Curiosamente foi publicado no dia dos meus anos...
E para quem ainda não saiba o Pessoa é o maior Poeta do Mundo e Arredores...
beijo.
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