segunda-feira, novembro 19, 2007

choque cultural ou duas europas diferentes

a semana passada saiu no P2 o seguite artigo:

"Chamam-lhe a Anne Frank polaca

15.11.2007


Em 1943, Rutka, uma judia de 14 anos, foi levada para Auschwitz, onde morreu. Deixou um diário escondido sob as tábuas da escada, em casa, escrito em 1943. Uma amiga guardou-o, até recentemente o divulgar. Acaba de ser publicado em Portugal pela Sextante e hoje Zahava (Laskier) Scherz apresenta-o em Lisboa, na Bulhosa de Entrecampos, às 18h30. Zahava é irmã de Rutka e contou ao P2 a história do diário e a sua descoberta de Rutka. Nascida em 1949, em Israel, Zahava tinha 14 anos quando soube dessa irmã perdida no Holocausto. Por Alexandra Lucas Coelho



Foi uma descoberta muito chocante. Eu não sabia que o meu pai fora casado antes. Sabia que ele perdera a família de origem, porque nunca tive avô nem avó, mas não sabia que fora casado e tivera filhos. E quando descobri senti-me muito próxima da filha, Rutka. Também do filho, Henius, mas especialmente da rapariga que via nas fotografias - tão próxima que quando a minha filha nasceu lhe dei o mesmo nome, Ruthie.

É um momento que nunca esqueci e que de alguma forma deu a volta à minha vida. Mas não inteiramente, porque o meu pai e eu não falávamos tanto assim disso. Ele preferia proteger-me de todas as memórias do Holocausto. Proteger-me, e talvez proteger-se. Mas essa descoberta influenciou seguramente a minha vida.

A 13 de Janeiro de 2006, acabava eu de voltar de uma viagem à América do Sul e a Londres, recebi um telefonema de Menachem Lior, um guia de Bedzin [pequena cidade no sul da Polónia]. Eu não o conhecia. Perguntou-me se eu era filha de Yaacov Laskier e quando confirmei ele disse: "Há algo muito emocionante. Foi encontrado um diário em Bedzin e a autora é Rutka Laskier. Sabe quem ela é?" Eu disse: "Sim, sei que é a filha do meu pai." Ele disse: "Bem, ela escreveu um diário, estamos bastante certos disso. E é uma escrita de grande qualidade. Os polacos estão muito excitados, chamam-lhe a Anne Frank polaca. Querem publicar o diário e estão à procura da família." Nesse momento senti que os céus estavam a cair.

Não leio nem falo polaco. É algo típico nas crianças nascidas em Israel a seguir à guerra: uma nova vida estava a começar, não era bem visto falar a língua das velhas cidades, dos velhos países. Falavam sempre hebraico comigo.
Mas através de famílias que falavam polaco, depois de saber que o diário existia, contactei Adam Szydlowski, que faz parte da Câmara Municipal de Bedzin e é uma espécie de representante da vida judaica local. Convidaram-me a ir a Bedzin em Maio e comecei a fazer contactos com sobreviventes desse tempo que viviam em Israel.
Ainda antes de ir à Polónia, por causa de viagens a Inglaterra em trabalho, conheci Linka Gold, que era muito amiga de Rutka e hoje vive em Londres. Apresentei-me e fui a casa dela.

Confirmou-me o que Rutka diz no diário, que ficaram as duas juntas durante uma "Aktionen", que era quando os alemães reuniam todos os judeus, e os queriam enviar para exterminação. Linka e Rutka conseguiram fugir. Linka contou-me isso, e a vida que tinham nesse tempo. Iam à mesma escola, tinham os mesmos amigos.

Linka tinha um caderno de memórias, como as meninas tinham - também no meu tempo -, em que as pessoas escreviam pequenas notas, para recordação. Mostrou-me uma das notas: era de Rutka. E disse que todas as outras raparigas que escreveram notas morreram no Holocausto.
Foi muito emocionante ver a escrita de Rutka. Era algo que uma rapariga escreveria, não me lembro bem, algo como "as coisas acontecem e temos que aproveitar a vida tão bem quanto podemos".
Em Maio fui a Bedzin e vi o apartamento onde a família do meu pai viveu. É uma casa de dois andares, com dois quartos em cima e dois em baixo. Hoje, uma família polaca vive na casa inteira, que está um pouco renovada, mas nessa altura penso que em cada quarto vivia uma família. Portanto, Rutka, o irmão, o meu pai e a sua mulher viviam todos num quarto, e foi aí que o diário foi escondido [debaixo do soalho das escadas].

Claro que não é a casa original do meu pai, ele vivia numa casa melhor e maior antes da guerra, mas os alemães puseram os judeus num único bairro. Os polacos que hoje lá vivem não souberam de nada até o diário ser descoberto e as pessoas começarem a vir ver a casa.
Stanislawa Sapinska [a polaca com quem Rutka combinou o esconderijo do diário] ainda vive. Não era exactamente uma amiga de Rutka. O que aconteceu foi que durante a guerra alguns polacos foram expulsos das casas [nas zonas transformadas em guetos]. Os alemães punham nelas os judeus. E a família do meu pai estava na casa onde Sapinska tinha vivido. Ela vinha visitá-los e tornou-se muito amiga de Rutka. Não trabalhava longe, vinha quase todos os dias pela hora de almoço, e conversavam.

Sapinska disse-me que Rutka era muito inteligente, muito aberta, muito madura para a idade, e que sabia muitas coisas que ela, Sapinska, não sabia. Quando Rutka compreendeu que não ia sobreviver à guerra disse a Sapinska que estava a escrever um diário e ambas decidiram que quando o fim viesse ela o esconderia num lugar da casa.
[Quando Rutka e a família foram levados para Auschwitz - onde todos morreram excepto o pai, Yaacov -, Sapinska voltou à casa, retirou o diário e guardou-o. Recentemente, quando fez 80 anos, contou a história a um sobrinho, que a convenceu a entregar o caderno ao museu municipal de Bedzin.]

Foi Sapinska quem me contou tudo isto. Encontrei-a em Bedzin. É uma mulher muito simpática e disse-me que eu me parecia muito com Rutka, apesar de agora eu ser muito mais velha do que Rutka era. Depois perguntei pelo diário, porque o queria para a minha família, e disseram-me que ainda o queriam conservar algum tempo, mas o dariam se o Yad Vashem, o Memorial do Holocausto em Israel, o pedisse. Então voltei a Israel, comecei a negociar com o Yad Vashem, e eles concordaram em fazer uma cerimónia e convidar Sapinska e Adam Szydlowski, e eles concordaram em dar o diário ao Yad Vashem. Isto foi em Junho de 2007. Houve uma grande cerimónia e o diário tornou-se famoso no mundo. Agora está no Yad Vashem, em Jerusalém.

Foi um choque para mim que Rutka soubesse tanto do que estava a acontecer no começo de 1943, as câmaras de gás em Auschwitz. Penso que é a coisa mais impressionante de todas no diário. Sapinska também me disse que Rutka sabia coisas. Rutka pertencia a um movimento de juventude que suspeito que estivesse ligado às pessoas na clandestinidade [da resistência polaca], que sabiam coisas. Temos de ter em conta que Bedzin é muito próximo de Auschwitz, e os comboios passavam, a caminho. Creio que as pessoas que queriam saber, que eram inteligentes e tinham ligações, sabiam.
É impressionante, hoje, que ela estivesse a viver com esta consciência, e creio que é por isso que a preocupava tanto a necessidade de o diário ser salvo, e contar tudo.
Perguntei a Menachem Lior, que era da mesma idade de Rutka, e ele disse-me que sim, que algumas pessoas sabiam, no começo de 1943. Creio que o mundo não queria saber.
O diário foi publicado em Israel há sete meses, e gente de todo o mundo contacta-me. As crianças agora vão à Polónia e fazem peças na escola sobre o diário de Rutka, Na Polónia, em Bedzin e na vizinhança já o estudam na escola. Julgo que também acontecerá em Israel, ainda é algo muito recente. Foi publicado em polaco, em hebraico, em inglês, e agora português é a quarta língua.


A partir de uma entrevista telefónica com Zahava (Laskier) Scherz, que vive em Rehovot, Israel, e é membro do Departamento de Educação Científica no Weizmann Institute of Science"

e eu, como até gosto bastante de diários de guerra, comentei com a Dorota, voluntária polaca, sobre este assunto. Ela nunca tinha ouvido falar de tal história, o que eu atribuo ao facto de ela estar fora do país desde Janeiro. Até aqui nada de chocante. O que me fez cair o maxilar foi a Lena (Ukraniana) perguntar: "Why they call her that? Who is Anne Frank?" Primeiro tive que me refazer do choque de ela não saber nada sobre Anne Frank, depois tive que engolir a seco a razão desse desconhecimento. Ou a razão porque em Portugal se sabe de mais ("Foi publicado em polaco, em hebraico, em inglês, e agora português é a quarta língua").
Portugal não participou (pelo menos não na linha da frente) na II Guerra Mundial. A Ucrânia, na altura URSS, sim. Porque é que a Lena havia de ler Anne Frank, se tem o relato vivo do avô, sobrevivente de um campo de concentração? Quando ela me disse isto, mais uma vez todos os meus pré-conceitos cairam por terra, fiquei desarmada, triste, assustada com a minha ignorância.
Mas ela continuou, como que a justificar-se, a pedir-me desculpa, por não conhecer a história da Anne Frank. Disse-me que provavelmente nem sequer tinham "esse livro" em ucraniano ou em russo, porque "in the soviet times" (em que ela viveu até aos 7 ou 8 anos) não havia muita literatura estrangeira a entrar na URSS, nada que falasse de quão bem ou mal era o mundo exterior. Pois, mas o diário só muito depois foi publicado. Sim, mas tempo não significa menos censura, disse-me! Há uma vasta literatura ucraniana, bem como de outros autores de leste, sobre a II GM. Homens e mulheres que sobreviveram para contar a história, que sobreviveram à Sibéria, que foram como bolas de pingue pong entre nazis e soviets... E eu a pensar que a Anne Frank fez uma grande coisa... Pah, não tirando o método à menina, nem ao Primo Levi (cujo diário também muito aprecio), nem a nenhum outro autor massivamente difundido da cortina de ferro para lá, há toda uma história que nós (europeus da velha UE, europeu de Oeste) desconhecemos, não procuramos, nem sequer sabemos.
O que nos ensinam na escola sobre a Revolução russa, a II GM mundial, o muro de Berlim... é tudo muito bonito, mas como nunca temos que nos confrontar com a realidade... passa-nos ao lado! E temos a barriga tão cheia de presunção, e civismo e saúde e comida e comodismo, que quando alguém nos larga assim uma bomba é como se nos tirassem o chão.
Nesse momento, em que eu e o Thomas (francês) discorríamos sobre o que lemos nos livros, de Anne Frank e todos os outros, a Lena (Ukrania) e a Dorota (polaca) acenavam, calmamente. As respostas dela proviam das histórias de família, dos relatos dos vizinhos, das memórias colectivas.
Tudo isto só me leva a pensar. Eu gostava de ler este livro da miúda polaca. Mas mais ainda gostava de ler os relatos dos sobreviventes do outro lado, dos que sobreviveram à URSS...

4 comentários:

Lucília disse...

Compreendo perfeitamente o que queres dizer com este texto. MAs por exemplo tens um momento histórico bem mais próximo , que se continua a tentar ignorar, é uma guerra civil, a que todos chamamos Ultramar. Acredita que há testemunhos e histórias hediondas, como em todas as guerras, sejam mundiais ou não. Muitas vezes só se sabe o que os outros querem que saibamos (infelizmente)!

Inspector Serôdio, José Serôdio disse...

Querida Miss Lee,

Essa é que é essa!
Toda a gente fala - tem falado - (e bem!) do lolocausto e dos milhões de judeus e outras minorias liquidadas pelos nazis em 10 anos de terror, mas esquecem-se - ou querem fazer esquecer - ou outros tantos milhões que, ao longo de 60 anos de revolunção bolchevique, em especiall durante o consulado de Stalin, foram chacinados, muitas vezes de formas igualmente hediondas.
E já agora, quem se insurge contra o genocídio, humano e cultural, que tem vindo a ser perpetrado pelos chineses na Mongólia e, em especial, no Tibete?...

Minha amiga, o lobi judeu é algo de mais poderoso que a maioria das pessoas imagina!

Mas, voltando ao tema do post, também fiquei curioso por ler o diário.
(ora aí está uma boa sugestão para presente de Natal)

Mexicano em Praga disse...

Pois é, a informacäo que nos chega aos ouvidos näo é bem a informacäo isenta e blá blá. Nós temos a informacäo de Oeste. Experimentem falar com um Macedónio que pensa ele da Guerra, da Ex-Jugoslávia, e comparem com as infiormacöes gerais. Por isso aqui te escrevo a minha frase favorita "what the fuck do i know??"
Falamos de barriga cheia.

Anónimo disse...

Adorei a história vou pedir a alguém para me comprar, depois, é com muito orgulho que a nossa língua seja a quarta para a qual ele é traduzido pois muitas vezes não compreendo como a quarta língua mais falada no mundo é tantas vezes mal tratada e esquecida.
Quanto à história, todas as guerras tem vários angulos, lembro-me quando vi '' A queda do terceiro Ritche'' e me emocionar mas nunca me esquecendo do que a loucura daquele homem fez. Assim te digo vivendo e aprendendo!
Mais uma vez me orgulho da tua atitude GRANDE!